quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Obrigada, caro Vinicius

Não era amor, era fogo. Não era amor, eram dois celulares desligados. Não era amor, era brincadeira de criança. Uma hora tudo acaba, tudo muda. No entanto, ninguém nunca pensa que possa acontecer com si próprio. O término é terrível, ‘são demais os perigos dessa vida pra quem tem paixão’.

De repente, sem que ninguém perceba, o sopro da rotina chega: quem não se acostuma ao cheiro do outro, a sombra aos hábitos? E essa onda cresce, cresce e vai crescendo. Quando já só se diz o necessário, já era. Desiste. O amor abrandou, a paixão acabou. Não se vê mais a beleza do caminhar da menina de Ipanema, dos fins de tarde no Arpoador, na vista do Cristo Redentor.

Mas como se percebe? E o susto? Uma bela hora se está em casa, contente, assistindo à tevê e almoçando no sofá. Na outra acabou, sumiu, evaporou. Está-se sozinha, está-se livre. Mas não se sente assim. Sente-se mais presa ainda, e mal. ‘De repente, do riso fez-se o pranto’ foi um soco no estômago.

Onde foi parar a beleza do Rio de Janeiro, o canto das maritacas e o balé das gaivotas? Depois do soco vem, além da dor, o enjôo, a falta de apetite. E, então, você, mulher sentimental e orgulhosa, que não admite depender sentimentalmente e psicologicamente de um homem, se tranca em casa. Fica lá, dias e noites, se perguntando o que fez de errado.

Vem o furacão e a tempestade na sua vida. Mas depois da chuva vem o sol e o céu azul. E você está pronta para voar de asa delta novamente, voltar à vida boêmia da Lapa e ser a mais nova ‘Garota de Ipanema’, a ‘coisa mais linda, mais cheia de graça’ que o Rio já teve.



Por Thais Lourenço

O novo morador

Era noite de natal, quando, sozinho, recebi a notícia de uma entrega. Calcei meus chinelos e desci até a portaria para recebê-la, sem muita animação. Em minutos meu estado de espírito mudou radicalmente. Era um peru. Um peru de natal, com farofa, arroz e tudo que eu tinha - sem saber por que - direito. Melhores momentos da vida são os que você não entende. Os momentos que não são óbvios, que não saltam das páginas, mas estão escondidos ali entre as linhas.
A falta de sentido clamava por uma análise. Baixando os olhos, reparei então que entre a farofa e a coxa do peru havia um papel, um cartão:

“Meu velho amigo, envio-lhe um peru de natal como forma de recordação e agradecimento do natal que passei em sua casa com você, Clara, e sua filhinha. Ela continua a ruiva com os cabelos mais radiantes do mundo? E você, o escritor turrão de sempre?
Aqui na Itália as horas não passam e os dias são iguais, você realmente não agüentaria a vida burra que passamos aqui. Ano que vem o peru é agradecimento por você ter me avisado que o Rio era residência melhor para um velho acostumado com as praias e as velhinhas de Ipanema. Bom, na verdade, não tenho certeza se você ainda mora aí. Se não morar; novo morador, pode aproveitar o peru. Com todo respeito, novo morador, espero ter falado com você por esta carta, Álvaro.
Saudações tricolores,
M.A.”

Meu nome é Álvaro, mas nunca fui casado, nunca tive uma filha ruiva e não sou tricolor. Mudei-me para um apartamento no Grajaú em novembro. Eu era o Novo Morador.

Fiquei sem saber o que fazer, não sabia se procurava o verdadeiro Álvaro ou se saboreava aquele peru, que já me fazia salivar. Bem, a carta era bem explícita, dirigindo-se a mim e praticamente me ordenando a comer o peru, não?

Meu corpo ordenava-me a começar o jantar. Todavia toda minha atenção estava no cartão. Recebi o cartão de outra pessoa. Com meu nome. Era como se pudesse viver outra vida, na mesma. Tentei decifrar como seria Álvaro. Imaginei um homem de cabelos brancos, óculos, desapressado e rabugento. Imaginei uma filhinha com cabelos vermelhos correndo pela casa e Clara, lânguida. Fui ao porão, revirei caixas e catei os óculos de meu bisavô. Meti-o na cara. A cortina se mexeu e senti uma mudança na espinha. Agora sim, agora era o Álvaro certo. Devorei o peru, respondi a carta e reclamei de tudo que achava errado mas nunca expressava.

Agora não lembro o que escrevi para M.A., pois quem vos fala é o Álvaro errado.

Os óculos na cabeceira contam os dias pra chegada do novo peru, da nova carta, do novo eu.