Era noite de natal, quando, sozinho, recebi a notícia de uma entrega. Calcei meus chinelos e desci até a portaria para recebê-la, sem muita animação. Em minutos meu estado de espírito mudou radicalmente. Era um peru. Um peru de natal, com farofa, arroz e tudo que eu tinha - sem saber por que - direito. Melhores momentos da vida são os que você não entende. Os momentos que não são óbvios, que não saltam das páginas, mas estão escondidos ali entre as linhas.
A falta de sentido clamava por uma análise. Baixando os olhos, reparei então que entre a farofa e a coxa do peru havia um papel, um cartão:
“Meu velho amigo, envio-lhe um peru de natal como forma de recordação e agradecimento do natal que passei em sua casa com você, Clara, e sua filhinha. Ela continua a ruiva com os cabelos mais radiantes do mundo? E você, o escritor turrão de sempre?
Aqui na Itália as horas não passam e os dias são iguais, você realmente não agüentaria a vida burra que passamos aqui. Ano que vem o peru é agradecimento por você ter me avisado que o Rio era residência melhor para um velho acostumado com as praias e as velhinhas de Ipanema. Bom, na verdade, não tenho certeza se você ainda mora aí. Se não morar; novo morador, pode aproveitar o peru. Com todo respeito, novo morador, espero ter falado com você por esta carta, Álvaro.
Saudações tricolores,
M.A.”
Meu nome é Álvaro, mas nunca fui casado, nunca tive uma filha ruiva e não sou tricolor. Mudei-me para um apartamento no Grajaú em novembro. Eu era o Novo Morador.
Fiquei sem saber o que fazer, não sabia se procurava o verdadeiro Álvaro ou se saboreava aquele peru, que já me fazia salivar. Bem, a carta era bem explícita, dirigindo-se a mim e praticamente me ordenando a comer o peru, não?
Meu corpo ordenava-me a começar o jantar. Todavia toda minha atenção estava no cartão. Recebi o cartão de outra pessoa. Com meu nome. Era como se pudesse viver outra vida, na mesma. Tentei decifrar como seria Álvaro. Imaginei um homem de cabelos brancos, óculos, desapressado e rabugento. Imaginei uma filhinha com cabelos vermelhos correndo pela casa e Clara, lânguida. Fui ao porão, revirei caixas e catei os óculos de meu bisavô. Meti-o na cara. A cortina se mexeu e senti uma mudança na espinha. Agora sim, agora era o Álvaro certo. Devorei o peru, respondi a carta e reclamei de tudo que achava errado mas nunca expressava.
Agora não lembro o que escrevi para M.A., pois quem vos fala é o Álvaro errado.
Os óculos na cabeceira contam os dias pra chegada do novo peru, da nova carta, do novo eu.
3 comentários:
parabéns pelo texto de uma leitora asmática =)
leitores asmáticos sempre presentes ! hahaha
Gostei. Gostei muito.
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